Meu pai, falecido em 14.03.2019 aos 91 anos, era o Professor e Doutor Francisco Pedro Estrázulas Pereira de Souza. Graduado em Filosofia pela UFRGS, com pós-graduação em Psicologia pela Universidade de Lawrence, Kansas; Mestre em Administração Pública pela University of Southern California (USC); e Doutor em Administração pela UFRGS. Todos o conheciam como Professor Chico Pedro; ele preferia (e se divertia) em ser apresentado assim em ocasiões solenes. Uma espécie de PHD gaudério, natural de São Gabriel.

Nada me ensinou e tudo aprendi com ele

O pai sabia muito bem que as pessoas aprendem o que querem e não aquilo que os outros pretendem ensiná-las. As pessoas preferem descobrir por si mesmas, de maneira proativa, ao invés de passivamente seguir um caminho determinado por outros. O que ele fez comigo, seu primeiro filho? Ele tinha um estilo não-diretivo. Nunca me apontou um caminho, falando: “faça isso” ou “faça aquilo.” Ao invés disso, ele deixava livros no meu caminho; me presenteava livros no Natal e nos meus aniversários. Me deu muitos presentes, mas em cada ocasião havia também um livro, ou melhor: pelo menos um livro, se não dois ou três.

Conversávamos muito, sobre tudo. Aliás, o pai parecia entender de tudo: de futebol a filosofia, de hipnotismo a hotelaria, de cinema a cinestesia. O principal, nessas conversas, eram as perguntas que ele deixava no ar: deliberadamente sem resposta, me estimulando a pensar e buscar minha própria resposta. Era também uma espécie de Sócrates dos pampas.

Nós nunca brigamos; nem sequer discutíamos um contra o outro. Discutíamos o mundo, a situação social, política e econômica. Esbravejávamos, educadamente, contra a burrice geral, a incompetência dos políticos, a ignorância dos empresários, a incapacidade das pessoas em perceber aquilo que, para nós, parecia ser tão óbvio. Raríssimas vezes discordávamos um do outro. Em geral um dizia “mata!” e o outro “enforca!”

Ele era também um grande contador de histórias. Adorava contar “causos” gauchescos, mas também histórias verdadeiras, de qualquer cultura. Quando fazíamos uma pergunta, sobre qualquer assunto, muitas vezes a resposta vinha em forma de uma história, uma parábola ou uma piada ilustrando aquilo que ele queria dizer.

A conversa com o Chico era sempre estimulante. Não só para mim, para qualquer um que conversasse com ele, porque ele trazia ângulos novos que enriqueciam a discussão. Fazia perguntas provocantes e ficava em silêncio, dando espaço para que os outros pensassem. Aprofundava a análise revelando novas camadas, novas perspectivas. E as pessoas saíam da conversa ruminando o que havia sido dito e perguntado. Ele plantava sementes na cabeça das pessoas, que depois davam plantas e frutos, por vezes exóticos.

Nas nossas conversas intermináveis, aprendi tudo e aprendi a gostar daquilo que ele gostava: cinema, gastronomia, humor, viagens, e leitura.

Cinema

O pai era um cinéfilo assíduo como poucos. Ia ao cinema cinco ou seis vezes por semana, às vezes assistindo dois filmes no mesmo dia. Pegava a sessão das 8 no Guarani e a sessão das 10 no Imperial, que ficava do lado; ou no Cacique, a uma quadra de distância.

A mãe contava que eles passeavam pela Praça da Alfândega num sábado ou domingo de tarde e olhavam os cartazes na vitrine dos cinemas, que incluíam fotos de algumas cenas. Depois escolhiam qual filme ver, à noite.

Mais de uma vez aconteceu de eu perguntar ao pai: “o que está passando no Imperial?” Ele me respondia: “Os Profissionais, com o Lee Marvin e o Burt Lancaster.” E eu perguntava: “É um filme policial?” Ele respondia: “É um faroeste em que o Lee Marvin e o Burt Lancaster são contratados, com mais dois, para resgatar a Cláudia Cardinale, que foi raptada por uns bandidos mexicanos. O chefe é o Jack Palance. Eles resgatam ela, mas ela não quer ficar com eles, quer ficar com os bandidos. Eles levam ela à força e o Jack Palance vai atrás deles, para raptar ela de novo…” Eu: “Então vocês viram o filme? E a mãe, interrompendo: “Que nada. Isso tudo ele sabe só de ver os cartazes… Nós vamos ver o filme amanhã!”

Gastronomia

O pai gostava de comer boa comida. Podia ser em restaurantes chiques e caros, ou num boteco desconhecido. O importante era a comida ser bem feita. Com ele aprendi que havia o Guia Michelin; ele chegava a planejar viagens para comer em certos restaurantes e depois nos contava os pratos que haviam comido e o vinho que haviam tomado.

Em casa, ele não cozinhava nada além de um tradicional churrasco gaúcho. Mas teve uma deliciosa (para nós) fase de preparar sobremesas deliciosas para o almoço de domingo e/ou alguns jantares memoráveis. Fez várias vezes pêssegos flambados ao rum, que se tornaram sua especialidade.

Humor

O pai adorava fazer piadinhas, trocadilhos e jogos de palavras. Não perdia uma oportunidade, mesmo que a piada fosse sem graça (e muitas vezes era sem graça mesmo). Mas ele ria muito das próprias piadas e com isto nos divertia. A sua diversão era contagiante.  Ele também era fluente em ironia e sarcasmo, sempre com extrema elegância: não contava piadas chulas, nem escatológicas; nunca falava palavrões.

Viagens

O pai adorava viajar, tanto a Nova Iorque como a Nova Petrópolis. Estava sempre planejando a próxima viagem. Ele tinha o espírito irrequieto e preferia ir a algum lugar, nos fins de semana, ao invés de ficar em casa. Com um fusca, nos levou até Santiago do Chile, descendo os Andes por uma estrada ainda em construção. Também de fusca passamos pela enchente do Araranguá, rebocados por um caminhão; fomos à Caverna do Diabo, em Eldorado Paulista, e até o Rio de Janeiro.

Em 1968 passamos 60 dias na Europa de trem, fazendo um roteiro em “x” todo planejado por ele para estar no lugar certo no momento certo: carnaval em Nice, feira de brinquedos em Nuremberg, musical em Londres e por aí a fora. Em cada local, hotel reservado com antecedência, por carta ou telegrama, numa época em que não havia internet e nem DDI. Depois vieram muitas outras viagens pelo mundo inteiro: em família, só ele e a mãe, ou depois só ele e a Magali. As aventuras que ele viveu em cada viagem rendiam muitas histórias na volta e dariam para fazer o roteiro de uma série com várias temporadas.

Leitura

O pai lia muito e eu também aprendi com ele a valorizar os livros. Meu quarto na adolescência tinha duas paredes cobertas pelos livros deles (meu pai e minha mãe). Isso incluía as obras completas de Freud, a enciclopédia Larousse e os “Great Books,” uma coleção de 56 volumes com as maiores obras literárias da Humanidade, de Aristóteles a Shakespeare, passando por Dante, Platão, Balzac e a Odisséia de Homero. Eles ainda tinham centenas de livros de psicologia  e administração, bem como alguns romances. Havia livros que o pai tinha desde a sua adolescência e eu os devorei a partir dos 11 anos de idade: toda a coleção do Tarzan, as obras do Monteiro Lobato, de Charles Dickens e do Alexandre Dumas. Depois comecei a ler James Baldwin e James Bond. Lembro da mãe perguntando ao pai se eu já tinha idade, aos 13 anos, para ler a coleção do James Bond, com o que continha de sexo e violência; e o pai dizendo só: “deixa ele ler o que quiser.”

O sentido da vida

Ao conversarmos sobre coisas mais profundas, como filosofia e religião, ele respondia com perguntas inspiradas por Krishnamurti. “Pai qual é o propósito da vida?” E ele: “Por quê a vida precisa ter um propósito?” E ele me indicava, além de Krishnamurti, “O homem à procura de si mesmo,” de Rollo May, “O medo da liberdade,” de Erich Fromm; e “O homem em busca de sentido,” de Viktor Frankl. O pai nunca foi religioso, mas sempre foi muito espiritual. Gostava de conversar sobre a história das religiões, destacando que Cristo viveu na Índia e que o Cristianismo, o Judaísmo e o Islã tinham mais semelhanças do que diferenças.

Ao mesmo tempo, me mostrava com suas atitudes que o mais importante era curtir a vida, com seus pequenos prazeres, e contribuir com trabalho para fazer um mundo melhor. Aprendi que a vida é seu próprio sentido. O propósito da vida é viver.

Certa vez, numa viagem, eu estava na dúvida entre comprar alguma coisa que tinha visto numa vitrine. Nem lembro do que era, mas lembro do seu comentário: “um gosto vale um vintém.” Ou seja, vale a pena gastar algum dinheiro para ter ou fazer algo que você realmente gosta.

Por outro lado, o pai não valorizava o ter acima do fazer.  Ele claramente valorizava mais a vivencia do que o produto, como agora virou moda se falar em termos de marketing.  Ele gastava em viagens, que eram vivencias; e comprava muito pouco para si mesmo. Naquela nossa viagem à Europa em 1968, fizemos tudo parando em pensões e hotéis duas estrelas; comíamos em restaurantes baratos, de modo a gastar no máximo 20 dólares por dia por pessoa; e cada um de nós tinha o seu orçamento. Mas uma vez a cada quinze dias,  o pai declarava que teríamos um jantar por conta dele, fora do orçamento. Foi assim que jantamos no Simpson on the Strand, em Londres, embora nosso hotel só tivesse banheiros coletivos, no corredor. E jantamos uma vez no Lido de Paris, mas comemos em bistrôs baratinhos no resto da semana.

A vivencia que tivemos juntos, naquela viagem, tem valor incomensurável. Tudo aquilo que vivemos juntos, na viagem das nossas vidas, ninguém jamais poderá nos tirar. Fica a saudade e a gratidão. Aprendi a pescar, graças a ti. Pai, obrigado por tudo.