Em primeiro lugar é importante dizer que a corrupção existe em toda parte. Existe em todos os países do mundo, existe na Alemanha, Estados Unidos, em toda a Europa, no Brasil, no Paraguai, no mundo inteiro. Mas ela existe em maiores ou menores graus de intensidade, com maior ou menor frequência.
A diferença é que, no Brasil, a corrupção vem crescendo e se espalhando, vem se tornando banal. Precisamos inverter essa tendência, reduzindo a corrupção brasileira ao mínimo. Em outros países existe corrupção; mas ela acontece de forma mais discreta, mais sutil, com um certo recato. Se procura guardar as aparências: “não na frente das crianças…” No Brasil também era assim. Nós tínhamos um certo orgulho arrogante de sermos menos corruptos do que, por exemplo, o Paraguai. Ultimamente está difícil de se sentir superior nesse tipo de discussão.
O grande pecado do PT foi o de acabar com nossa esperança (ou ilusão?) de erradicar a corrupção na política brasileira. Ao invés de acabar com ela, o PT sucumbiu e se lambuzou, tanto ou mais do que os que ele criticava.
Pessoalmente, eu não desisti. Minha ideia continua sendo terminar com a corrupção.
Ou, se não é possível terminar com ela, pelo menos diminuir bastante a corrupção no Brasil. Sabendo que ela não vai terminar completamente, porque ela não termina completamente em lugar nenhum. Mas acredito que é possível reduzir bastante a sua incidência em relação ao que se vê hoje.
Se quisermos reduzir a corrupção significativamente, precisamos entender a corrupção. Não adianta lutar contra um inimigo que você não conhece, ou que você não entende. Quanto mais você entender sobre a corrupção, melhor você vai poder agir para acabar com ela, ou pelo menos para poder reduzi-la significativamente.
Pagando bem, fazemos qualquer coisa
Para entender a corrupção, vamos procurar descrever o que acontece na cabeça de quem corrompe, e na cabeça de quem é corrompido.
Normalmente é o empresário que faz o papel de corruptor. Ele se justifica dizendo que para obter uma concessão, ou para ganhar uma concorrência no serviço público, ele é obrigado a pagar uma propina a um funcionário. Isso é uma espécie de pedágio; se você não pagar esse pedágio, você não passa. Você não consegue sequer entrar na concorrência, ou que dirá ganhar a concorrência. É uma condição imposta pelo funcionário público, para que você possa pelo menos concorrer.
Eu já trabalhei com diferentes empreiteiras, e essa questão da corrupção algumas vezes foi levantada.
E se todas as empreiteiras se recusassem a pagar propina? Se todas as empreiteiras se derem as mãos e combinarem que ninguém vai pagar propina, se acaba com a propina nas obras do governo.
Um empreiteiro me disse: “é, esse pacto foi tentado já, duas ou três vezes; mas sempre aconteceu de que alguém acabava furando o mesmo e pagando a propina. E ao pagar a propina, ganhava a obra e deixava as outras na mão. Depois de duas ou três tentativas, as empreiteiras acabaram abandonando a ideia de terminar com a propina, não tem como.”
Essa é uma questão importante porque, afinal, em qualquer situação de corrupção tem que haver os dois: o corruptor e o corrompido, ou corrupto. Se os corruptores todos se negarem a pagar, não haverá mais corrupção.
E como é que fica esse processo, do ponto de vista do corrupto? Ele costuma dizer que ele detém um poder sobre um determinado serviço, assim como a prostituta tem poder sobre o seu próprio corpo, e decide se vai vendê-lo ou não. O funcionário público tem um poder sobre uma concessão, sobre a contratação de uma obra, sobre a decisão em relação a uma concorrência, e ele decide vender.
Eu já conversei com políticos que me deram essa justificativa: “Olha, é impossível a gente impedir que alguém faça isso, porque os valores são tão grandes que você não consegue convencer o sujeito de que ele deve continuar sendo honesto.” Eles alegam que quem começa o processo é o corruptor, que chega e diz assim: “olha, eu aqui ofereço para você cinco milhões de reais para colocar a minha proposta como vencedora nessa obra.”
Esse valor de cinco milhões de reais arruma a vida do sujeito. Ele não consegue resistir a essa tentação e coloca a culpa do processo na proposta que o corruptor faz. Agora, de novo, quem é que começou? Foi o funcionário público, ou foi o empresário? Foi o corrupto ou o corruptor?
Se for uma briga dentro de um jogo de futebol, cartão vermelho para os dois. Não interessa se foi um que xingou a mãe do outro, ou se foi o outro que provocou primeiro, expulsa os dois. O mesmo tratamento deveria ser dado então, na questão da corrupção. Na questão PT e o governo brasileiro, a justificativa muitas vezes é essa de que “os empresários é que corrompem, a gente não tem como segurar, mas a iniciativa é do empresário.” O empresário diz o oposto: “A iniciativa é do funcionário público.” Na verdade o que se precisa fazer é expulsar os dois, cartão vermelho para os dois.
A parte do PT neste latifúndio
Muito se falou sobre o aumento da corrupção no Brasil durante as gestões de Lula e Dilma na presidência. Será que aumentou mesmo a corrupção nesse período, ou o que vimos foi uma maior transparência, revelando o que sempre esteve lá, porém longe dos nossos olhos? Será que o Ministério Público Federal e a Polícia Federal passaram a agir com maior rigor durante a gestão Dilma, expondo aquilo que Lula, FHC e todos os outros presidentes anteriores, inclusive os militares, acobertavam?
É difícil avaliar, com isenção, se a corrupção se tornou maior por causa do PT ou se aumentou apesar dos esforços do PT em combate-la. A verdade simples é que não há estatísticas fidedignas à respeito; e a maioria dos ditos analistas políticos estão a soldo ou do PT ou de facções contrárias ao PT. Imparcialidade se tornou algo cada vez mais escasso no País.
Minha observação pessoal é de que a corrupção vem se alastrando e se intensificando no Brasil, gradativamente, desde o tempo dos governos militares do Movimento de 1964. Naquela época circulavam boatos de corrupção ligada ao Coronel Mário Andreazza, Ministro dos Transportes. Segundo esses boatos, as empreiteiras pagavam propinas para participar de obras de estradas. Falava-se, também, que a instituição do seguro obrigatório de veículos havia sido direcionada através de uma corretora de seguros de Novo Hamburgo, cujo sócio era parente do ministro.
Quero marcar apenas o ponto de que havia, sim, corrupção durante os governos militares. É possível que ela acontecesse em menor escala do que antes, mas sem dúvida existia.
Depois das “Diretas Já,” Fernando Collor de Mello se elegeu com uma plataforma de crítica aos políticos corruptos, que ele chamava de “marajás.” O que se viu, na prática, foi um nível de corrupção maior ainda do que aquilo que havia até então. Os empresários voltavam de Brasília chocados com a exigência de pagar propinas para Paulo César Farias se quisessem participar de qualquer licitação pública. A corrupção subiu de patamar.
No nível estadual, em São Paulo, Orestes Quércia elevou ainda mais o patamar da corrupção ao exigir 10% de propina sobre quaisquer licitações públicas. Os empresários comentavam, chocados, dois aspectos: (a) o percentual era mais alto do que nunca (se considerava até então que desviar 1% ou 2% de um grande contrato para os políticos e funcionários envolvidos era algo discreto, aceitável e fácil de disfarçar; desviar 10% era escancarar a corrupção, não havia como disfarçar); (b) a propina se tornava generalizada, incidia sobre todos os contratos públicos e isso não era mais falado em sigilo.
Na gestão FHC a corrupção era mais discreta. Não se falava abertamente a respeito. Entretanto, ela voltou a aumentar em valores e frequência quando se votou a emenda constitucional que permitiria a reeleição do Presidente. Nasceu naquela época a expressão “fisiologismo político”, pois os governistas compraram os votos necessários no Congresso e os políticos de diferentes partidos (e especialmente do PMDB) colocavam suas necessidades fisiológicas (dinheiro) acima da ideologia partidária, vendendo votos ao maior pagador.
A situação piorou, mais uma vez, no Governo Lula, porque a corrupção se institucionalizou através da criação do “mensalão.” Ao invés de cobrar propina por projeto, foi instituída a contribuição mensal de propinas dos empresários para os partidos do governo. Esse foi um marco importante na aceitação da corrupção como parte da cultura nacional; mas notem que o PT não criou isso do nada; isso foi uma etapa “natural” na evolução da corrupção no País. O PT não inventou a corrupção, mas tornou-a sistêmica, organizando e estruturando o processo. O PT também “socializou” a corrupção, distribuindo as propinas entre um maior número de participantes. Para garantir uma base de apoio mais ampla, o PT ampliou o número de beneficiários das propinas.
Dois outros fatores contribuíram para um aumento da corrupção nos governos do PT: (a) o partido adotou uma estratégia de aumentar significativamente o número de “cargos de confiança” na administração pública. Até então, milhares de cargos de chefia e direção eram ocupados por funcionários públicos de carreira; ao transformá-los em “cargos de confiança” eles passaram a ser ocupados por nomeações políticas, por pessoas vinculadas ao PT e que teriam uma passagem transitória por esses cargos. Isso criou uma cultura de “vou roubar o máximo possível enquanto puder, nesse pequeno tempo em que tenho acesso aos meios para obter propinas do setor privado!” (b) o PT designou para esses cargos de confiança pessoas despreparadas (mas leais ao partido). O despreparo visível dos incumbentes contribuiu para a cultura do “roubar enquanto posso,” pois já que não tinham preparo, certamente essas pessoas ficariam desempregadas quando outro partido subisse ao poder.
A ascensão de Dilma, por outro lado, representou uma força moralizadora. Embora ela fosse visivelmente incompetente para exercer a Presidência da República, ela era também visivelmente mais honesta do que Lula e todos os componentes da cúpula partidária. No seu primeiro ano de governo, Dilma exonerou vários ministros acusados de corrupção e endossou processos contra diversos funcionários acusados de crimes, mais do que qualquer outro Presidente. Parecia que, agora sim, a corrupção diminuiria, graças a uma gestão mais íntegra de Dilma.
O caldo entornou na campanha para as eleições de 2014. Disseminou-se ainda mais a compra de apoio político e de votos. Assim como a aparência de integridade de FHC havia caído quando da campanha para sua reeleição, agora a aparência de integridade de Dilma caía também, diante da necessidade de se reeleger a qualquer preço.
A corrupção foi tão grande e tão generalizada, que deu margem a manifestações públicas contrárias. Ao mesmo tempo, revelou-se a incompetência do PT na gestão de uma situação econômica mais difícil. Isso ocorreu não apenas no âmbito do Governo Federal, mas também nos governos estaduais e municipais, expondo um binômio “incompetência-corrupção” ligado ao PT.
É claro que isso existe também em relação a outros partidos; todavia, o PT mostrou-se incapaz, em 2014 nas campanhas políticas, e em 2015 nas gestões pós eleições, de administrar a economia e o quadro político para engajar as elites e o povo como um todo.
Diziam os romanos que “a mulher de César, além de ser honesta, precisa parecer honesta.” Dilma fracassou em parecer honesta, prejudicada pela deterioração da imagem geral do PT. Diante das acusações frequentes de corrupção, o PT reagiu muito mal, com um simples “sou, mas quem não é?” Em outras palavras: “corrupção, no Brasil, não é motivo para críticas ou impedimento de governar, pois a corrupção existe em todos os partidos e em toda a sociedade brasileira.”
Ora, essa afirmação, embora verdadeira, colocou a classe media diante de uma encruzilhada crucial: devemos aceitar a corrupção como parte inevitável da nossa cultura, ou devemos combate-la em todas as frentes, na política e no dia-a-dia? Pelo que se viu em 2015 e 2016, a maioria das pessoas optou pelo combate à corrupção. Mesmo com contradições e inconsistências, essa se tornou uma postura mais aceitável do que a alternativa proposta, que parecia ser: vamos aceitar a corrupção como parte inerente à nossa cultura, pois é impossível acabar com ela.
Colocar as coisas em termos absolutos, em termos de: “ou preto, ou branco,” é uma postura mais típica das culturas “de Competição,” como EUA e Inglaterra. É uma postura arriscada, pois as pessoas podem escolher justamente o oposto daquilo que o proponente pretendia. Se algum marqueteiro político, influenciado pelas práticas americanas, aconselhou o PT a respeito do assunto, acabou prejudicando ao invés de ajudar. Independente de preferencias político-partidárias, vejo a rejeição à corrupção como algo positivo para a sociedade brasileira. É preciso, contudo, que o combate à corrupção não se torne uma coisa seletiva, direcionada apenas contra certos segmentos sociais, ou partidários, poupando outros. Todos os corruptos e corruptores devem ser processados e punidos.
Evitando a volta para o futuro
Como é que se evita que a corrupção volte a crescer no futuro? Em primeiro lugar, precisa haver uma legislação efetivamente severa, que puna os implicados duramente, que demonstre que a consequência da corrupção ser descoberta seja tão negativa, que isso se torne um incentivo para que as pessoas não se envolvam nisso. Este é um aspecto importante, mas isso não é o suficiente.
Um outro aspecto é acabar com a situação que gera a corrupção, ou seja, se existem funcionários públicos que detêm um poder muito grande para decidir uma licitação, então é preciso acabar com esse poder concentrado.
É preciso haver normas sobre as licitações que sejam totalmente transparentes, de tal forma que não seja possível fraudar.
Sem dúvida a diminuição do tamanho do Estado, por si só, já diminui a tentação da corrupção e as oportunidades de corrupção. E é por isso que nos países que têm estruturas governamentais descentralizadas e onde o Estado tem um tamanho menor dentro da economia, nessas culturas existe menos corrupção; é simplesmente por isso.
Quando a cultura favorece a corrupção
Existem fatores culturais que favorecem a corrupção.
Que fatores são esses? Vejamos as cinco dimensões de valores culturais: a Distância de Poder (DIP), o Individualismo (IDV), a Orientação para o Desempenho (DES), o Controle da Incerteza (CDI) e a dimensão de Flexibilidade versus Disciplina (OLP). Diferentes culturas podem ter um score maior ou menor em cada uma dessas cinco dimensões; e esse score sendo maior ou menor, ele favorece mais a corrupção ou não.
Por exemplo: em termos de Distância de Poder, quanto maior ela for, quanto mais concentrado o poder, quanto maior o respeito à hierarquia, maior será também a corrupção e maior a transgressão (mais frequente). Numa sociedade em que existe grande respeito à hierarquia, significa que se respeita a figura da autoridade do outro, mas não a lei. Na ausência da figura da autoridade, quando o policial não está presente, eu me sinto à vontade para transgredir. Por quê? Porque o controle não está em mim; o controle está no outro. Eu vejo a necessidade de respeitar, não a lei, mas respeitar a hierarquia e a presença da figura de autoridade.
Nas sociedades de alta Distância de Poder, o poder está concentrado, e o poder concentrado é que acaba favorecendo a corrupção. Isso acontece porque a relação hierárquica entre as pessoas é considerada mais importante do que a lei em si. Se o meu chefe manda, eu faço; mesmo que seja contra a lei. A lei não se aplica aos poderosos, pois eles têm direito a privilégios que os colocam acima da lei.
O que acontece quando eu estou preso no engarrafamento e não vejo nenhum guarda por perto? Eu fico numa situação em que eu estou igual a todos os outros, mas o meu instinto hierárquico busca uma alternativa em que eu consiga ter mais poder do que os demais. Se eu sair pelo acostamento, vou chegar antes dos outros e mostrar que eu posso mais.
Individualismo ou Coletivismo?
A dimensão seguinte é a do Individualismo versus Coletivismo. No Individualismo, eu assumo responsabilidade individual e eu considero isso mais importante do que demonstrar fidelidade a um grupo, que é o Coletivismo.
Numa sociedade coletivista o que se quer não é o bem comum. O que se quer é o bem do meu grupo, e os outros grupos que se explodam. Então vem aquele famoso ditado “para os meus amigos, tudo; para os demais, os rigores da lei.” A lei só é aplicada para os outros, para os meus amigos não se aplica.
Se eu faço parte de um partido corrupto, eu denuncio as tentativas de processar a mim e aos meus amigos. Considero que essas tentativas são intrigas da oposição. Eles devem cumprir a lei, mas os meus amigos estão acima da lei.
A terceira dimensão é a questão de Orientação para Desempenho versus Orientação para Qualidade de Vida. Essa não é uma dimensão que tenha influência específica sobre a questão da corrupção e das transgressões, vamos deixar essa de lado.
Controle da Incerteza
A quarta dimensão, que é o Controle da Incerteza, tem influência no seguinte sentido: as sociedades que têm alto Controle da Incerteza costumam dar uma ênfase muito grande para a legislação. Elas acham que devem haver leis para tudo, como uma tentativa de acabar com a incerteza de não haver leis suficientes que esclareçam o que é certo ou errado. Ocorre que esses países não seguem essas leis. Fazer leis é uma coisa, obedecê-las é uma coisa diferente.
Se as leis que já existem não são cumpridas, fazer mais leis não vai mudar nada na situação. Isso é apenas uma forma de desviar a atenção do fato que existe impunidade. A impunidade ocorre porque não se cumprem as leis existentes e não porque é preciso mais leis.
A questão não se resolve com o comprimento da lei e sim com o cumprimento da lei.
Flexibilidade ou Disciplina?
O que muda a impunidade é aquilo que está vinculado à quinta e última dimensão, que é a Flexibilidade ou Disciplina. Quando o score é baixo existe disciplina. Nesse caso, a sociedade é normativista. As normas são consideradas absolutas, e a sociedade valoriza a obediência às normas e valoriza a autodisciplina: “eu obedeço a norma, mesmo quando não há um guarda por perto”; “eu obedeço a norma, mesmo que ela prejudique os meus amigos, ou a minha família”; “eu obedeço a norma porque eu assumo responsabilidade individual por obedecer a norma.”
Quando o score é alto, a sociedade considera que a aplicação da norma precisa ser cuidadosamente pensada em função da relatividade da situação específica. Deve-se prender quem passou o sinal vermelho? Depende, tudo é relativo. Depende de quem é essa pessoa que passou no sinal vermelho. É uma figura importante? Então talvez não se deva prendê-la, mas apenas adverti-la. É alguém que estava correndo de carro para socorrer outro que estava passando mal? Então isso tem que ser considerado.
Nas sociedades normativas o sujeito é multado independente do motivo pelo qual ele fez a transgressão. Nas sociedades relativistas e flexíveis, se examina a situação para definir se a norma deve ser aplicada ou não.
Quanto maior o score, mais flexibilidade, maior o relativismo. O problema é que esse relativismo acaba dando espaço para que se tolerem situações de transgressão, para que se tolerem situações de corrupção. Se acaba permitindo que essas coisas aconteçam, porque elas envolvem os meus amigos, porque elas envolvem uma pessoa importante, porque havia uma circunstância qualquer que justificava a transgressão, E começa a ficar mais difícil de discernir se a justificativa realmente era válida ou não.
Ocorre que o Brasil tem um score alto, um score que é quase o dobro do score da Alemanha, ou dos Estados Unidos, por exemplo. Isso significa que nós somos duas vezes mais flexíveis do que os alemães, ou os americanos, mas significa também que essa flexibilidade pode acabar servindo para endossar o jeitinho, para endossar a corrupção, para endossar a tolerância às transgressões de normas em todos os níveis.
O mecanismo é o mesmo, só varia de intensidade. O mecanismo está suportado por essa questão de relativismo, ao invés de normativismo; flexibilidade excessiva, ao invés de autodisciplina.
Como mudar
Como é que se resolve tudo isso, numa sociedade como a brasileira?
É preciso trabalhar na educação, e na educação não apenas no sentido de escolaridade, mas na formação de valores.
Uma cultura nacional se forma nos primeiros dez anos de vida. É nessa fase que as crianças aprendem a noção de certo e errado, do que que é considerado aceitável e o que não é aceitável. É nessa idade que se forma o que Freud chamou de superego, aquilo que Eric Berne chamou de ego parental, ou estado parental do ego, em termos de Análise Transacional. É nessa idade que se formam os valores e esses valores se formam em função da observação do comportamento dos adultos. A criança observa aquilo que os adultos fazem e ela age de acordo com aquilo que ela observa, muito mais do que por aquilo que os adultos dizem.
A criança aprende rapidamente que o que ela ouve não é tão importante, o importante é o que ela vê, o que ela enxerga, a maneira como os outros se comportam. E ela aprende isso primeiro em casa, ao observar a sua família, seus pais, os seus tios. Ela aprende com a comunidade à sua volta. Por último, ela vai aprender isso também na escola.
Tudo isso vai formando o caráter, os valores de uma criança, e os valores de uma comunidade e a cultura de um país como um todo. Se nós quisermos que o Brasil mude em relação à corrupção, nós precisamos começar a nos comportar de maneira diferente, diante dos nossos filhos e netos e sobrinhos, diante das nossas crianças. Nós precisamos ensinar esses valores de não-tolerância às transgressões, de maior igualdade, de maior responsabilidade individual, de maior cumprimento das leis. Nós precisamos ensinar isso através dos nossos atos, em casa, no bairro, na escola, em todas as situações.
Se nós conseguirmos fazer isso, daqui a vinte anos nós teremos uma cultura diferente. Não é uma coisa que se muda de uma hora para outra, mas também não é uma coisa que então se deva abandonar ou deixar de fazer. É preciso que se comece logo.
Dizem que alguém observou uma pessoa plantando uma árvore e o observador disse:” você está plantando essa árvore, mas vai levar vinte anos para essa árvore crescer, dar frutos e propiciar sombra.” A pessoa que estava plantando disse: “é por isso mesmo que eu resolvi plantar ela hoje e não esperar até amanhã”.
Mudar a cultura é um processo de longo prazo. Por isso, nós precisamos começar imediatamente. O quanto antes, melhor. Sabendo que alguns efeitos vão surgir em prazos mais curtos, mas não vai se ver diferença em menos de dois ou três anos, por exemplo. Esse é um processo que vai devagar, mas é um processo que é tão importante, que precisa começar imediatamente.
Excelente análise, Fernando.
Gostei da forma como você passa pelas dimensões culturais de Hofstede para explicar a corrupção. No seu livro você vai mais fundo na análise de alguns países, mas aqui você deu uma passada que ajuda a entender o fenômeno que tanto se discute hoje.
Ousaria dizer que a dimensão de Orientação para o Desempenho (ao contrário de seus colegas holandeses, concordo contigo de que a escolha original do autor como Masculinidade não foi muito feliz) está na base de como construímos o “estafe” dos nossos órgãos públicos.
O concurseiro típico busca estabilidade (qualidade de vida), uma renda certa, independentemente de seu trabalho. Em alguns casos é o extremo do “ganhar sem trabalhar”, ou como dizia um professor que tive: “você não gostaria de receber um salário só por ser você?”.
Quando essas pessoas entram nas instituições nem sempre têm a compatibilidade de perfil e a competência técnica realmente exigida pela prática da função, por mais que tenham tido um excelente desempenho nas provas. É comum uma mesma pessoa prestar concurso para fiscal da receita, agente ou papiloscopista da polícia federal e analista administrativo em uma agência reguladora. Muitos deles estão atrás apenas de um cargo, a sonhada estabilidade.
Creio que alguém que entra como funcionário estável de uma organização sem saber exatamente o que tem que fazer e como pode ser mais suscetível à corrupção, afinal, se eu não estou aqui para trabalhar, para gerar um resultado para a sociedade (e além disso, tenho estabilidade), tudo posso em nome da garantia do meu futuro.
Pretendo, em breve, analisar essa questão no meu blog (www.ataldagestao.com). Acho que seu excelente texto ajudou a me inspirar a respeito (já quase postei aqui, né? hehe)
Abraço do seu xará,
Fernando Nascimento
[…] análise de outro xará meu, o Fernando Lanzer, sobre os aspectos culturais que ajudam a entender a corrupção no Brasil, vai ao ponto. Porém, na minha humilde opinião, também é necessário colocar na mesa a questão […]
Quanto a dimensão de orientação para o sucesso, caso tenha uma pontuação alta não justificar corromper para atingir os resultados?
Diego, a dimensão Orientação para o Desempenho pode levar a tentar o sucesso a qualquer preço, levando a transgressões (principalmente) e também à corrupção. Todavia, ao comparar a incidência de corrupção em diferentes culturas, não se constata correlação específica com essa dimensão; a corrupção existe tanto em culturas com pontuação alta como em culturas com pontuação baixa. A correlação existe com Distância de Poder, com Coletivismo e com Flexibilidade versus Disciplina.