Dilma falou bem, mas acho que não se deu conta da profundidade daquilo que estava dizendo.

Segundo o Estadão, Dilma declarou (10.12.2016) que o Brasil poderá ser vítima de “um golpe no golpe”.

“Eles subestimaram a crise econômica, acreditaram no que estavam dizendo, e muitos sabiam que era mentira, de que a crise econômica era responsabilidade exclusivamente minha”, disse a petista em discurso. “E também subestimaram os efeitos da crise política como fator de instabilidade, de aprofundamento de qualquer crise, e isso fica claro nos momentos em que  a crise política se transforma em crise institucional”.

A que ponto chegamos… A ex-Presidente da República fala em “golpe no golpe,” quando se trata de fazer o impeachment, por corrupção, de quem promoveu o impeachment dela, por improbidade de gestão. Ela chama de “golpe” a denúncia de corrupção. Ou seja, uma denúncia legítima é considerada “golpe.” Ela não se dá conta de que está dando razão aos seus críticos, quando chama tudo de “golpe,” pois está nivelando tudo por baixo. Está chamando de “golpe” qualquer movimento de destituir quem foi eleito, mesmo que o movimento seja totalmente legítimo, legal e ético. Isso não é “golpe de estado,” isso é a democracia institucional em ação, fazendo o melhor pelo País.

Ao dizer que a crise econômica não era exclusivamente responsabilidade sua, falou o óbvio. Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento e consciência (reconheço que estou falando de 10% da população) sabe que a crise econômica brasileira não foi criada pela incompetência da Sra. Dilma Roussef. Ela é produto de anos de incompetência dos governos federais, estaduais e municipais que a antecederam. O pecado de Dilma é que ela não soube lidar com a crise. Ela fazia parte de um sistema incompetente e corrupto. Pode não ter se beneficiado pessoalmente com propinas, mas sabia de tudo e foi conivente, na melhor das hipóteses. Isso para não falar dos benefícios indiretos obtidos por quem ocupa posições de autoridade numa sociedade como a brasileira.

Disse que “subestimaram os efeitos da crise política como fator de instabilidade.” Ou seja: “vocês vão puxar o tapete para derrubar o PT, mas isso vai derrubar (quase) todo o sistema político brasileiro, ameaçando as instituições do País! Vocês vão se arrepender!”

Pessoalmente, não me arrependo.

Estamos enfrentando questões que são, não apenas suprapartidárias, são questões supra-ideológicas. Não se trata de PT versus PSDB e nem mesmo de direita versus esquerda. Estamos enfrentando a corrupção generalizada que abala todas as instituições brasileiras, do setor público ao privado. Isso afeta os três poderes, de Brasília a Botucatuva e afeta também nossas empresas, escolas e também nossas famílias. Estamos enfrentando o lado mais terrível dos valores básicos da nossa cultura, nossa maneira de ser e fazer.

E isso é muito bom, embora possa ser muito dolorido também. Estamos questionando a exploração do próximo, que encontramos no capitalismo e no comunismo igualmente. Isso vai além da ideologia, dos regimes políticos e dos partidos. Estamos falando de integridade e dignidade. E é muito bom que a gente se sinta indignado com o que estávamos vendo à nossa volta.

O primeiro passo para melhorar a situação é reconhecer que: como está, não pode continuar. É preciso reconhecer que existe um problema e que precisamos agir. Nós não inventamos a corrupção; mas todos convivemos com ela, durante anos, e fomos todos coniventes, em maior ou menor grau. É muito bom que tenhamos recuperado nossa capacidade de sentir indignação. Muitos de nós havíamos ficado “confortavelmente dormentes,” como disse Roger Waters, do Pink Floyd, no álbum The Wall.

Aceitamos a corrupção generalizada como fazendo parte da nossa cultura e concluímos que não havia forma de evita-la ou mesmo combate-la. Com isso, a situação foi se deteriorando cada vez mais.

Agora, com a Operação Lava-Jato e similares, estamos deixando de ser dormentes. É desconfortável, mas a dor é o sintoma que nos leva a procurar a cura.

Dilma, Cunha, Renan, Temer, Lula, Aécio e tantos outros, todos dirão: “não façam isso comigo! Eu vou denunciar aqueles que estão me acusando! Isso vai ameaçar a estabilidade das nossas instituições!”

Vai, sim. E é disso que precisamos.

Na Holanda, onde moro atualmente, se vê com frequência aquilo que quem vem de fora chama de “uma reforma holandesa.” Casas construídas em 1640 passam por uma reforma radical, na qual apenas a fachada, que faz parte de um patrimônio histórico tombado pela UNESCO, é preservada. Você vê uma obra dessas e enxerga, por uma janela aberta, que o interior da casa virou um enorme buraco e nada mais. Todas as paredes e pisos, o telhado, o chão, tudo foi removido e até as fundações estão sendo substituídas. Apenas a fachada se sustenta, graças a um conjunto de suportes de madeira e metal que a impedem de desmoronar. Terminada essa reforma, que pode durar dois ou três anos, sendo uma verdadeira reconstrução completa do prédio, a fachada continua dizendo “1640” em cima da porta principal; mas o interior é totalmente moderno, as fundações são novas, o encanamento e as instalações elétricas têm a melhor tecnologia do Século 21. A energia é solar e controlada por aplicativos inteligentes que você maneja com seu telefone celular. A fachada é uma lembrança histórica que denota respeito ao passado; mas o interior representa o que de melhor existe no presente para que se possa viver em conforto, de maneira sustentável, por várias décadas.

No Brasil, precisamos de uma “reforma holandesa” nas nossas instituições. Preservemos a fachada do Congresso Nacional e da Praça dos Três Poderes; mas façamos uma reconstrução completa por dentro, das fundações ao telhado. Reforma política, fiscal, trabalhista e previdenciária. Aproveitemos o embalo e façamos uma reforma igualmente profunda no nosso sistema educacional, começando pelo ensino básico. Vai levar tempo, talvez uma década ou mais. Por isso mesmo, precisamos começar já. Quanto mais cedo começarmos, mais cedo a reforma ficará pronta.