Muita gente atribui as mazelas da cultura brasileira à colonização portuguesa. Tudo o que não gostamos seria devido ao fato de termos sido colonizados por Portugal, que nos transmitiu valores detestáveis; dizem, ainda, os que assim pensam, que erramos ao expulsar os colonizadores holandeses do Nordeste, derrotando-os na Batalha de Guararapes em 1649. Se o Brasil tivesse sido colonizado pelos holandeses, seríamos hoje um país organizado, igualitário, tolerante e próspero; onde todos andam de bicicleta e a maconha foi descriminalizada, as prisões estão vazias, a educação é gratuita e de boa qualidade e o aborto é oferecido pelo SUS.
É claro que essas afirmações não podem jamais ser levadas a sério, pois os fatores históricos que influem na cultura são muitos, ao longo dos anos. Entretanto, me interessei por analisar um pouco mais a questão da cultura brasileira comparada com a cultura portuguesa, deixando as questões históricas e histéricas de lado, para debruçar-me sobre os estudos de Hofstede, um holandês, que mediu as dimensões de valores culturais desses três países, dentre muitos outros.
Somos parecidos com Portugal em quê?
Vejamos os escores de Brasil e Portugal nas cinco dimensões medidas por Hofstede, examinando uma de cada vez:
Distância de Poder (DIP): Brasil 69; Portugal 63. A diferença é muito pequena nessa dimensão, que mede se a cultura é hierárquica (“manda quem pode e obedece quem tem juízo”) ou igualitária. Se considera que qualquer diferença inferior a dez pontos na escala não é significativa o suficiente para ser considerada como tal. Os escores, portanto, dão um empate técnico nesse aspecto.
Entretanto, Portugal não foi a única influência na cultura brasileira em 500 anos; tivemos influências significativas da cultura nativa dos índios brasileiros, dos escravos africanos e das diferentes comunidades de imigrantes que aqui se estabeleceram, esses últimos a partir do Século 19.
Ocorre que a cultura africana é também hierárquica, assim como a indígena também é. Portanto, essas duas apenas reforçaram esse aspecto trazido pelos portugueses. Quanto aos imigrantes, dentre as principais correntes de imigrantes que vieram ao Brasil, apenas os alemães, holandeses e escandinavos trouxeram valores igualitários. Todos os demais, que vieram em maior número, tais como italianos, espanhóis, japoneses, turcos e sírio-libaneses, reforçaram também os aspectos de hierarquia. Não foram apenas os portugueses a influir nesse aspecto, tanto é que o escore é até um pouco mais elevado aqui, do que lá, em meio ao empate técnico.
Individualismo versus Coletivismo (IDV): Brasil 38; Portugal 27. Aqui a diferença é de 11 pontos e passa a ser significativa. Portugal é bem mais coletivista (“aos amigos, tudo; aos demais, os rigores da lei”) do que o Brasil, embora o Brasil continue sendo mais coletivista do que os EUA e a maioria dos países da Europa. Vale lembrar que Coletivismo descreve uma cultura na qual os grupos são mais importantes do que os indivíduos; a lealdade aos grupos é crucial; os grupos lutam entre si pelos interesses dos seus membros; e os relacionamentos são mais importantes do que as tarefas. É provável que o Coletivismo brasileiro tenha se tornado menos significativo do que o português, pela influência do individualismo europeu dos italianos, espanhóis, franceses, alemães, holandeses e escandinavos, além da influência mais recente de americanos e ingleses. Todas as demais etnias que compõem a população brasileira têm culturas Coletivistas.
Desempenho versus Qualidade de Vida (DES): Brasil 49; Portugal 31. A diferença é ainda mais pronunciada nesse aspecto, sendo que o Brasil está mais voltado para o desempenho do que Portugal, onde a qualidade de vida é priorizada. Nesse aspecto, a influência holandesa-escandinava vai no sentido oposto: todos esses países têm escores abaixo do de Portugal. Já todos os demais estão mais voltados para o desempenho, puxando o escore brasileiro para cima. No exterior o Brasil tem imagem de “país festeiro,” mas o escore dessa dimensão reforça uma imagem um pouco diferente: o Brasil é uma cultura onde se faz muito trabalho e muita festa, com intensidades comparáveis (work hard, play hard). O foco no desempenho é menor do que na Alemanha, EUA e Japão; e é comparável ao que se vê na Itália e França. Temos um certo equilíbrio entre trabalho e qualidade de vida, sem pender para um dos dois lados.
Controle da Incerteza (CDI): Brasil 76; Portugal 104. A diferença é bastante grande nesse aspecto, embora ambos Brasil e Portugal estejam no quarto mais alto da escala. Ocorre que Portugal tem o escore mais alto do mundo nessa dimensão, que é caracterizada por aspectos tais como: legislação extensa e detalhada; expressão das emoções; religiosidade e superstição; aversão ao risco e à ambiguidade. Todos esses aspectos são visíveis na cultura brasileira, mas eles são ainda mais evidentes na cultura portuguesa. Já que Portugal é o recordista mundial nessa dimensão, pode-se dizer que todas as outras etnias puxaram o escore para baixo, embora ele se mantenha superior ao que se vê no norte da Europa e nos EUA. A cultura portuguesa também é bastante formal e conservadora, o que pode estar ligado a essa dimensão. Por sua vez, o Brasil tem demonstrado que é mais conservador do que se pensava e isso se reflete na composição do Congresso Nacional.
Orientação de Longo Prazo (OLP): Brasil 65; Portugal 30. Essa é a maior diferença de todas. Ela significa, em essência, que a cultura portuguesa valoriza mais a disciplina em detrimento da flexibilidade; enquanto que no Brasil a flexibilidade é mais valorizada do que a disciplina e o cumprimento das normas. No Brasil, em função do combate à corrupção, boa parte da população tem se manifestado criticando este aspecto da nossa cultura; entretanto, não se pode culpar os portugueses por isso. É possível que nossa flexibilidade esteja mais associada às etnias indígenas e africanas. O fato é que essa flexibilidade, que nos ajuda em termos de criatividade e improvisação, por outro lado nos prejudica em termos de não cumprir normas e tolerar os pequenos atos de corrupção no dia-a-dia.
Resumo da ópera
A conclusão é que não somos tão parecidos assim com Portugal, exceto nos aspectos de hierarquia e coletivismo. Esses dois aspectos têm, como sempre, um lado positivo (ex: amizades) e um lado negativo (ex: corporativismo). Portugal nos deu coisas boas e más; não devemos só criticar aquilo que não apreciamos, sem reconhecer e agradecer por aquilo de que gostamos.
Nos demais aspectos, a culpa é de outras influências culturais.
A questão fundamental, entretanto, é outra: de que adianta ficar jogando culpa nos outros como desculpa para nossa cultura atual? Qual é a cultura que desejamos ter para nossos netos? O que precisamos fazer para mudar nossa cultura na direção desejada? Ao invés de culpar aqueles outros que influíram no passado para chegarmos aonde estamos, devemos assumir nossa responsabilidade pelo nosso futuro, que só depende de nós. Entendendo o nosso passado e o nosso presente, podemos fazer o nosso futuro desejado se tornar uma realidade.
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